Agroecologia pra que(m)?
“Esse ano o ENGA foi grande!” Foi grande, dizemos, porque em 2017, o Encontro Nacional dos Grupos de Agroecologia foi articulado dentro de uma estrutura maior, que interligou o X Congresso Brasileiro de Agroecologia, o VI Congresso Latino-Americano de Agroecologia e o V Seminário de Agroecologia do Distrito Federal e Entorno, reunindo mais de 5000 participantes, entre estudantes, educadoras/es, pesquisadoras/es, agricultoras/es e convidadas/os de toda a América Latina. Pela primeira vez a REGA entrou oficialmente como apoiadora da Comissão Organizadora do CBA, desafio que nos trouxe muitos aprendizados e questionamentos, demonstrando que precisamos refletir com profundidade sobre os objetivos e as intencionalidades de nossas parcerias com outras organizações do movimento agroecológico. Assim como no I ENGA, em Curitiba – PR (2009), nesse ano compartilhamos o acampamento com os movimentos sociais do Campo Unitário, incluindo a Via Campesina, MST, MAB, FETRAF, MMC, CONTAG, FEAB, entre outros, demonstrando a importância de diálogo e aproximação entre as diversas organizações que carregam a bandeira da Agroecologia.
A dimensão, orçamento e desenho deste mega-evento, justamente em um momento em que a Agroecologia está sofrendo um processo de institucionalização e cooptação, reforçou a necessidade de levantarmos como temática central: Agroecologia pra que(m)?
Assim como as preocupações ecológicas e ambientais de modo geral, a noção de Agroecologia tem nos dias de hoje uma forte ambivalência, sendo incorporada por um número cada vez maior de agentes e instituições com os mais diversos interesses. Desde que a FAO “reconheceu” a agroecologia em 2014, vemos por parte de instituições conservadoras tentativas de apropriação e cooptação que buscam transformá-la em mais uma técnica do “capitalismo verde” e do “desenvolvimento sustentável”, esvaziando seu conteúdo político e buscando subordinar conhecimentos tradicionais milenares à lógica do mercado “ecológico”.
Em todo o mundo, vivemos um contexto de crise do modelo civilizatório capitalista que se manifesta no Brasil através da atual crise política e econômica. Neste cenário percebemos a insuficiência das propostas políticas da esquerda tradicional, incapaz de elaborar novos projetos de sociedade para além da lógica estatal, desenvolvimentista e reformista. Acreditamos que são as organizações populares horizontais e auto-organizadas que tem potencial para criativamente trilhar caminhos alternativos a este modelo.
Entendemos que a Agroecologia se desenvolveu a partir da sabedoria dos mais variados povos em conexão com a natureza, que resistiram e seguem resistindo contra a expansão do capitalismo no campo. É apenas através da mobilização permanente de organizações populares comprometidas com a Vida e que buscam transformações sociais emancipatórias que a chama da Agroecologia pode se manter acesa. Assim, buscamos honrar essa ancestralidade, pautando o debate sobre o papel da Agroecologia na atualidade e os diferentes caminhos e formas de luta necessárias para a superação dos obstáculos da sociedade em que vivemos da forma mais ampla possível.
Neste IX ENGA reafirmamos que “sem anticapitalismo não há Agroecologia!” pois as mudanças que sonhamos não se realizarão sob esse sistema. Enquanto Rede, tecemos o compromisso de construir em nossos grupos e coletivos um horizonte para a “transição agroecológica” em direção a uma mudança sistêmica para uma nova sociedade com indivíduos e coletivos emancipados e livres, baseada na Vida, na diversidade, na abundância e na justiça social para autodeterminação de todos os povos.
Da mesma forma, reafirmamos que “sem feminismo não há Agroecologia!”, pois é inegável o papel histórico das mulheres na construção do saber-fazer agroecológico, na defesa dos bens comuns e na resistência ao avanço do capital sobre nossos corpos e nosso trabalho. Salientamos que o patriarcado é elemento estruturante da dominação, e que soluções horizontais devem incorporar os aprendizados vindos dos debates e práticas feministas. Nos comprometemos a valorizar o conhecimento das mulheres e catalisar a organização política de nossas irmãs, fortalecendo sua articulação em rede, a busca por autonomia econômica e política, e buscando ampliar os instrumentos de autodefesa e combate severo à violência patriarcal, machista e sexista nas esferas privadas, públicas e não formais.
Entendemos também que a luta de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses e trabalhadores rurais é essencial para toda a sociedade, e encontra-se em um momento extremamente vulnerável frente ao renovado interesse de empresas transnacionais pelas terras tropicais, acompanhada à crescente perda de direitos que vemos no nosso país. Percebemos um aumento da violência e dos massacres no campo que visam a expropriação de terras e a subordinação da lógica tradicional de produção à lógica competitiva do mercado. Assim, as lutas por reconhecimento e demarcação de terras e contra mega-projetos está na ordem do dia, sendo também nosso papel denunciar a manipulação da grande mídia na glamourização das atividades de mineração e hidrelétricas. Afirmamos o compromisso de denunciar a criminalização de movimentos camponeses e de movimentos sociais de luta, que vem sofrendo perseguições arbitrárias e ataques cada vez mais violentos.
É preciso mais do que nunca apontar a insuficiência das reformas agrária e urbana nos moldes atuais e avançar nas lutas por acesso e uso da terra. Nesse sentido, o debate entre via reformista e via revolucionária precisa ser renovado e aprofundado. Discutimos durante o IX ENGA a importância da união e fortalecimento dos elos de ligação entre todos os povos, e a aproximação das lutas rurais e urbanas para fortalecimento mútuo. A luta pela distribuição das terras no campo é a luta contra a especulação imobiliária nas cidades; A luta contra a intoxicação de trabalhadoras/es rurais é a luta contra a intoxicação de trabalhadoras/es urbanos, pois os agrotóxicos e transgênicos já contaminam todo o Brasil. É preciso fortalecer as cooperativas de consumo evidenciando que a separação entre trabalhadoras e trabalhadores rurais e urbanos não pode existir, incentivar as iniciativas de agricultura urbana e permacultural para redesenho das cidades e promover a jardinagem de guerrilha como forma de ocupação dos espaços públicos urbanos e fortalecimento de vínculos comunitários. É também de grande importância a luta pelo reconhecimento institucional da transição agroecológica na extensão rural. Sabemos que somente através da união consciente se consegue mais respeito e se preserva a cultura da sociedade.
Reconhecemos que ainda precisamos amadurecer nossas construções em relação às questões étnico-raciais, tanto em espaços de debate quanto em atitudes e práticas cotidianas – individuais e coletivas. Nesse IX ENGA, mais uma vez recebemos o alerta sobre esta necessidade, com a leitura da carta do GT Negritudes que denunciou atitudes racistas ocorridas durante o VIII ENGA (Bananeiras-PB) e durante o Congresso de Brasília. Os grupos e coletivos da Rede devem tomar atitudes concretas para o amadurecimento e construção de um caminho anti-racista realmente consciente e coerente.
É sempre essencial buscarmos formas para viabilizar a permanência da juventude no campo, garantindo o intercâmbio e valorização tanto do meio rural quanto do urbano. Toda a juventude, rural e urbana, deve ter acesso a uma educação emancipadora a serviço da transformação, que abra a possibilidade de cursar o ensino superior. Denunciamos o corte de 80% (10 milhões para 2 milhões) nos recursos do PRONERA, o que interfere diretamente na permanência dos estudantes que vem do campo nas Universidades. Reafirmamos a necessidade de garantir a diversidade dentro das Universidades, e seguimos criticando algumas das metodologias elitistas, conservadoras e pouco holísticas que ainda predominam no ensino superior.
No âmbito das sementes, discutimos que a legislação não facilita o acesso das Sementes Crioulas aos pequenos produtores. É essencial seguirmos criando materiais informativos para a sociedade em geral conscientizar-se da importância das sementes crioulas e da prisão que siginificam as sementes patenteadas transgênicas. A REGA afirma seu compromisso de seguir incentivando o intercâmbio de conhecimentos através das feiras de trocas de mudas e sementes.
Agradecemos a todos os membros dos Grupos de Agroecologia presentes que construíram esse IX Encontro, pelo compromisso na participação nos espaços autogestionados do ENGA; às guerreiras e guerreiros que chegaram com antecedência para construir todo o pré-ENGA, à Bamboo Sapiens pela força na construção dos banheiros secos, às agricultoras e agricultores que produziram os alimentos orgânicos e agroecológicos que nos nutriram tão bem durante os 4 dias de Encontro e à todos e todas que participaram e se envolveram com nossas atividades! É hora de voltar pra casa e fortalecer nossos grupos e coletivos em suas ações locais e de base pois é debaixo pra cima que a REGA constrói sua força.
Sonhamos e nos comprometemos a construir nos próximos encontros espaços de protagonismo infantil; a ampliar a participação de nossos irmãos e irmãs de comunidades indígenas, tradicionais, agricultores/as e trabalhadoras/es do campo; a deixar frutos positivos e concretos com nossos Encontros por onde passarmos, mobilizando células locais, escolas, faculdades, movimentos, coletivos, associações, sindicatos, conselhos e fóruns locais.
Nós e as futuras gerações colheremos os frutos das sementes que estamos plantando hoje. Portanto, nossa construção política é teórica e prática no presente, sem deixar de ter consciência do passado e do que queremos para o futuro. Nossa Agroecologia é popular e autônoma, nos posicionamos contra qualquer tentativa de apropriação por interesses políticos e econômicos que buscam a criação de novos mercados para as velhas práticas de exploração social. A liberdade só existe quando plantamos as sementes férteis de forma consciente, autônoma, coletiva e diversa. Olhos nos olhos, com o peito aberto para os afetos, damos as mãos para potencializar a união e a diversidade de pessoas, experiências, sabores e sotaques desta ciranda da vida. Afirmamos nosso caminho de construção no saber-fazer agroecológico comprometido com todos os seres.
“Eu vou plantar, eu vou colher, eu vou regar/A semente da mudança vai agora germinar!”
Noites de lua minguante,
chama e fogueiras acesas, embalo do côco e de roda,
berimbau e capoeira,
hip-hop, samba, poesia e pagode,
cantando a luta e a união,
alimentando as águas, a terra, o amor no coração
Brasília, 2017